quarta-feira, 2 de março de 2011

aos oitenta, andando de bicicleta - com lingerie vermelha.

............ Até encher de calos, ela me disse. Meu Deus, meus olhos ficaram molhados. Olhou-os diretamente, com seus olhos de quem viveu e sente a vida a cada passo trêmulo e cansado, profundamente e fixamente “Ficávamos até de madrugada, mesmo! Eu aproveitava o que podia. Até o pé encher de calo, sabe? do asfalto, sabe! - E sorria com os olhos e rugas - aproveite muito, querida”. Paloma não deve ter entendido o porquê da minha comoção. Mas engoli. Logo que a senhora saiu da loja, eu e a Pá nos sentamos meio molengas e voltamos a conversar ou reclamar sobre nossas paixonites e chiliques e da vontade de ir embora pra comer, ou pra ir embora mesmo, ir. Entende-me. Chega de batatas travadas na garganta. Quero gargalhar, quero muito. Eu tava querendo sair e encher meus pés de calos, tirar as malditas sapatilhas que dão muito chulé, tava cansada de ver as pessoas passarem através da vitrine, entre manequins e plaquetas que dizem promoção, mas nem são. Eu é que me sentia na prateleira como ponta de estoque, levatudo, grátis, brinde de loja de 1,99 - que é de dois reais, muita mentira, queridos. A bala de troco. Que dá carie. Tava precisando que aquela senhora, a Neusa, me olhasse nos olhos e me falasse sobre seu carnaval e sobre viver. Nós dançaremos muito, em alguma vida, bem descalças. E na outra vida você vai comprar sutiãs bem sexys, não como aqueles dois que você comprou, beges e moles. Eu sei que os peitos caem e esparramam com os anos, e ficam difíceis de juntar (como a senhora me disse e eu ri sincera como suas palavras). Mas nós iremos dançar com sutiãs vermelhos e firmes, até amanhecer! Mas... Ah, como eu queria sair correndo! Sair correndo mesmo que os peitos que eu não tenho balançassem demais. Correr de mim, dos outros, dos rostos e de todo o resto! Do resto que eu estava comendo. Tem que lutar pelo arroz e feijão, nega! Tem que lutar, tictac e meus músculos flácidos. Tictac e a merda do meu pessimismo, do meu desanimo comigo e essa rima desnecessária, pra acabar! Você não prometeu que seria diferente? Que você IRIA, garota. E eu preciso ir. E não paro de me apontar o dedo, e a arma; e a alma me aperta. Pra começar, eu to nem ai para os vocativos que me serviriam. Garota. Pf, você não tem 15 anos. Neusa tinha uns 80, bem linda. E entrei nisso como quem foge do assunto. Como quem foge. Desarmados. Cheios de alma, que dá carie. Com dor de dente e chulé, assim não dá. É, não ta dando. To bancando a engraçadinha sem graça, mas ta difícil respirar esses dias sem cheiro. Tédio – por que o mundo corre. E eu to parada assistindo. Não gosto de ser platéia, literalmente. Palco, te quiero! Preciso me aplaudir, coitadinha. Ai, ai. Que preguiça, Macunaíma! Vou ser psiquiatra e ganhar muito dinheiro. Um cadarço matou enforcada uma menina. O jornal me mata enforcada. O jornal e as amantes que matam a filha do cara com um cadarço de tênis. Um outro cara, em Porto Alegre, que saiu atropelando ciclistas, “o atropelador de ciclistas” – como pronunciou o jornal (como se fosse uma profissão) – ele deve ter achado que também iria ganhar muito. Muito sei lá o que. Não sabemos o que fazer com isso que temos nas mãos, a vida. Então, olho para os meus pés calejados e com chulé das 19 horas - de moça que trabalha em loja e tem que usar sapatilhas chatas – e fujo, na imaginação. Só não fujo de bicicleta, pois aquela nova profissão pode estar com tudo! Nem corro pra não balançar meus não super peitos. Eu danço de sutiã vermelho, e até de madrugada! Nem fujo de tênis, pois tem cadarços – e existem amantes pelo mundo! Mas faço tudo isso... Nem que seja só na imaginação, só por que a Neusa pediu! E não devemos desconsiderar o que uma garotinha de 80 anos nos diz... Não mesmo, pode ser fatal! Ainda mais quando ela tem nome de remédio pra dor de cabeça!