segunda-feira, 25 de outubro de 2010

"Nosso povo não conhece a juventude e mal desfrutamos de uma infância curta. De tempos em tempos surgem exigências segundo as quais devemos assegurar às crianças uma liberdade especial, uma proteção especial, o direito a um pouco de imprudência, um pouco de travessura, um pouco de diversão, esses direitos devem ser reconhecidos e incentivados; as exigências surgem e quase todo mundo as aprova, não existe nada que merecesse maior aprovação, mas também não existe nada que seja menos concebido em nossa vida, aprovamos as exigências, empenhamo-nos em cumpri-las, mas logo tudo volta a ser como era. Vivemos de tal modo que uma criança, assim que é capaz de correr um pouco e distinguir o ambiente a seu redor, precisa tomar conta de si como um adulto; as regiões nas quais, por motivos econômicos, precisamos viver espalhados, são extensas demais, nossos inimigos são muitos, os perigos que nos expreitam a cada canto, inúmeros - não temos como proteger as crianças da luta pela existência, se o fizéssemos, seria este o seu fim prematuro. Em meio a essas razões trágicas desponta uma outra, sublime: a fertilidade da nossa espécie. As gerações - e todas elas são numerosas - atropelam-se umas às outras, as crianças nao têm tempo de ser criança. Embora outros povos tratem as crianças com todo o cuidado, embora construam escolas para os pequenos, embora as escolas recebam, diarimente, uma enxurrada de crianças - o futuro do povo -, ainda assim são sempre as mesmas crianças que, por um longo tempo, dia após dia, saem de lá. Nós não temos escolas, mas exércitos de crianças, piando ou chiando alegres enquanto não conseguem assobiar, cambaleando ou rolando com a força do impulso enquanto não conseguem correr, arrastando consigo o que estiver pelo caminho enquanto não conseguem enxergar, nossas crianças! E ao contrário do que se vê nas escolas, não são as mesmas crianças, não, são sempre, sempre outras, sem fim, sem interrupção, mal surge uma criança e ela já deixa de ser criança, mas logo atrás dele espremem-se os rostos das novas crianças, indistinguíveis na multidão e na pressa, com as faces coradas de alegria. Sem dúvida, por mais bonito que isso tudo possa ser e por mais que outros com razão possam nos invejar, não temos como proporcionar uma infância legítima às nossas crianças. E isso tem consequências. Uma certa infantilidade perene, invencível caracteriza o nosso povo; em franca contradição ao que de melhor temos, ao nosso juízo prático infalível, às vezes somos acomedidos por uma estupidez total e absoluta, a bem dizer, a mesma estupidez inconsequente, extravagante, orgulhosa e leviana que se observa nas crianças, tudo isso em nome de uma pequena diversão. E se nossa alegria naturalmente já não se manifesta com todo o ímpeto da alegria infantil, é certo que ao menos algum resquício desta ainda sobrevive."

Retirado do livro ''Um artista da fome", Kafka.

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