sábado, 23 de março de 2013

hoje
eu queria olhar
o mar
e depois
deixar
nossas curvas se encontrarem
deixar
nas suas turvas águas a maldade
por estarmos
sós
em um imundo quadrado
amanhã
pois
sóis amanhecem
em um mundo estrábico
meu olho
então
converge para meu dentro
lentes de contato
pra gente se tocar
o inabitado
onde ondas são
e o que se desfaz sendo
inacabado

quinta-feira, 21 de março de 2013

Na solidão das cadeiras, nos pratos sem restos ou migalhas, Amélia se debruçava e esquecia de si mesma como um papel de bala no jeans e contemplava as gotas de gordura deslizando na parede. Amélia, no lugar de olhos, tinha dois punhais. Ela era estática, o chá esfriava em suas mãos. Amélia era uma prece, ela, que nunca dançou.

quinta-feira, 14 de março de 2013

a avó a abraçava com seus 2.000 braços, passava café, vestia a mesa com a toalha xadrez azul e a olhava com seus dois olhos. apenas dois, e eles a amavam uma vida inteira enquanto suas mãos, entre as maçãs, bolachas e pães, se tocavam e se entendiam. diziam poucas e doces palavras, se sentiam como ninguém mais. e então ela me acena, sorrindo lágrimas, no portão. e todos os dias eu sinto, com os olhos fechados, o vento, que balança seus cabelos prateados enquanto ela abre as janelas pela manhã, no meu rosto.

sábado, 9 de março de 2013

Não é porque um homem nojento e desumano foi 'eleito' presidente da Comissão de Direitos Humanos, ou porque o maior produtor de soja do Brasil - o qual ganhou, inclusive, o famigerado Prêmio Motosserra de Ouro - preside o Ministério Do Meio Ambiente, nem é porque a mídia sensacionalista deturpa os fatos e o HUEC, seus funcionários, médicos, enfermeiros e demais profissionais, pacientes, nós, os estudantes, a população, é que pagam o preço inflacionado de uma justiça omissiva: ela espera, com um figurino fino, por trás das cortinas, o espetáculo começar. Ou a plateia silenciar. Ela espera, enquanto o relógio no pulso do trabalhador, gira, gira, gira numa ciranda de impostos. Mas pagamos mesmo, sem problemas, no stress, keep calm, somos uma das 'nações mais ricas' do mundo. Dá pra parcelar em 12x no cartão de crédito, tá? Pode ficar tranquilo. Sambamos com a boca fechada, driblamos descalços (no entanto, sem os pés no chão) todas essas chateações, né, né, né? Ah, nisso se dá um jeitinho, 'vamo vê tv'! E aplaudimos emocionados no final. Não é porque me assaltaram, e assaltam meus amigos, meus irmãos, ou quem der bobeira, ou porque temos que dar passos sempre desconfiados, ou porque matam gente feito coisa ou pedaço de carne, não é porque o sangue que escorre nas canaletas é dissolvido nos alagamentos, é misturado ao lixo, a garrafas plásticas que boiam, aos luxos que compramos para nos sentirmos mais que carne, mais que alguém, mais tranquilos, menos bichos. Bicho é de comer. Nós somos seres evoluídos, somos seres Humanos (somos, não é?). Roubaram das nossas Louis Vitton, falsificadas ou não, a coragem para ser. Não é porque não se pode ficar quieta, reservada, ou chorar e já acham que você tem algum problema, você não é normal. Eu tô legal, mas existe aqui no peito uma massa, um músculo, que pulsa, pulsa, pulsa. O silêncio é tão importante e o valor, entretanto, está no barulho dos motores dos carros potentes percorrendo nossos batimentos cardíacos. Normal é rir de tudo com os olhos fechados 24 horas por dia. Dormimos todos os dias com as bochechas doendo de tanto rir, né? Mas dai é só você tomar um 'remedinho’... A dor passa, passa, passa. Não é porque julgam quando ‘ouso’, ou quando resolvo dançar como quiser, ou quando sorrio demais até ocupar os olhos, ou porque perguntei e não devia, ou porque gosto da pequeneza da poesia. Não é porque erro demais, ou não cumpro com minhas obrigações, ou com a minha palavra, ou porque eu decepciono. Não é porque eu quero ir pra outro lugar, não é porque eu quero ficar. Não é porque tem gente com fome, com frio, com contas pra pagar, com dor, com sono e não consegue dormir. E dói. Não é porque as crianças não podem ser. Não é porque vendem anestésicos e compram pessoas. Não é porque a Igreja também mata e prostitui, não é porque o pastor sugou o fiel, não é porque a senhorinha morreu sozinha e ninguém orou por sua alma. Não é porque eu não tenho grana pra comprar meu lugar no céu, ou a amizade dos bacanas. Não é por isso que eu estou escrevendo isso enquanto eu deveria estar estudando. É porque eu digo, apesar de tremula, sim. Eu quero sim acreditar em uma nação rica de gente humana, inteligente e sensível. Eu quero caminhar a pé com meus amigos sem medo. Eu quero poder sentir cheiro de mato. Eu quero mais janelas nos quartos. Eu quero que o poder não usurpe a liberdade. Eu quero que o trabalhador durma com a mente calma e estomago satisfeito e o coração completo. Eu quero que as crianças aprendam sobre o respeito, não sobre distinção ou sobre o ‘correto’. Eu quero que a mulher tenha força para arrebentar as grades com a mente, e não só com o corpo. Eu quero que as pessoas sejam respeitas e saibam mais sobre política, e que os políticos saibam mais sobre pessoas. Eu ainda quero acreditar. Eu, que tenho feito pouco. Nós deixamos de acreditar no que somos, e pra essa doença a indústria farmacêutica não vai ofertar medicamentos. Eu não sou uma máquina com ponteiros insanos. Sou bicho, não é porque como, defeco, reproduzo e morro, é porque vivo farejando com os olhos algo que eu não sei o que. E, mesmo assim, continuo sei lá pra onde. Até virar adubo. Eu quero mais jardins.